A Páscoa na inocência e na essência

Essa época me traz a memória recordações indeléveis... Quando ainda criança, domingo de Páscoa começava com barulho de papel de chocolate na cama. Como era maravilhoso me mexer e de repente, ainda sonolenta, sem esperar, bater a mão em algo barulhento e colorido. Imediatamente tateava aquela forma oval, abraçava meu ovo de páscoa e com meu coração acelerado, levantava em um salto! Recordo-me do cheiro de bacalhau impregnado na casa dos meus avós, do gosto maravilhoso dos temperos. Cores, sons, cheiros, gostos... Um verdadeiro misto de cuidado, carinho, dedicação, amor. Desde a preparação do peixe, a escolha do chocolate. Desde os toques sutis no tempero do almoço, a surpresa da manhã junto ao travesseiro. Então fico pensando: Quando muitos criticam a simbologia dos chocolates, dos peixes, dos coelhinhos, dos papais Noéis, acabam por alfojar significados imprescindíveis que tecem a nossa natureza tão humana, e que são intrínsecos a nossa subjetividade. Podemos perfeitamente estabelecer uma linha tênue entre os paradoxos das verdades imutáveis, das razões categóricas com as fantasias permitidas, com as epifanias mais lúdicas. Cresci compreendendo o verdadeiro significado da Páscoa, o real sentido do Natal. Aprendi desde muito pequena a amar, a reverenciar e viver a mais exímia história de amor protagonizada por Jesus. Enxerguei ainda criança a manjedoura, os reis magos, o salvador a nascer. Reconheci com inexplicável gratidão e devoção seu sacrifício naquela cruz, seu corpo rasgado, seu sangue derramado, suas mãos e pés furados, a coroa de espinhos. Senti seu indescritível amor, desfrutei do seu perdão libertador, encontrei a vida através de sua morte e ressurreição. E hoje, com meus 33 anos, vejo que essa história partilhada não perdeu o verdadeiro significado dentro de mim, nem o seu eterno valor por se fundir com meras tradições, com rituais hereditários. Muito antes de esperar o Papai Noel, aprendi a esperar a graça infinda daquele que nasceu para me salvar. Muito antes de desejar a visita do coelhinho da Páscoa, aprendi a desejar ardentemente a presença de Deus todos os dias enquanto eu viver. Antes de saborear os chocolates, de receber os presentes, compreendi perfeitamente que o maior presente é Jesus em mim, e é exatamente este amor fascinante que colore e adoça o meu existir. E não é este amor que nos permite ser livres, puros como crianças? Confesso que sinto-me ainda assim: uma criança apaixonada por papai noél, arrebatada por sensações que me transportam as minhas mais sorrateiras reminiscências. Quando revivo minha infância, percebo definitivamente que não foram as simbologias que construiram meu caráter, os meus fundamentos ou minha fé. Foram os sentimentos interiorizados e eternalizados nelas. Sou o que sou porque fui amada, cuidada, mimada, presenteada, instruída, orientada, porque pude fantasiar, sonhar acordada, imaginar a vida com bruxas, fadas, príncipes encantados, papais noéis e coelhinhos... Sou o que sou, porque além de experimentar as pequenas alegrias provenientes das datas comemorativas, aprendi a decifrar e viver a alegria maior existente em uma vida inteira. Laconicamente, as cores, os cheiros, os gostos, os sons, as nossas percepções, sensações, recordações e razões refletem a cruz, o sacrifício, o amor do Pai por nós, a morte do nosso antigo eu, a ressurreição da nossa liberdade, a transformação da nossa água em vinho, da nossa fome em maná, da nossa cegueira em luz. Refletem Deus em nós, e através de nós! Feliz Páscoa com a inocência e a real essência que concede a nós uma vida livre, abundante e eterna! Simone Contelli

utopias

Sinceramente, eu gostaria muito de compreender o que de fato é o amor pronunciado por muitos, ensinado pelas religiões, testemunhado nas mais antigas histórias. Aquele amor altruísta, totalmente desinteressado, que doa-se o que tem para beneficiar o próximo, que aquece aquele que sente frio, que alimenta aquele que sente fome, que sacia aquele que tem sede, que estende a mão sem esperar as recompensas. Gostaria mesmo de saber onde se esconde em nossos dias, o amor ensinado por Jesus nas escrituras, que acolhe os órfãos, as viúvas, os mendigos, os idosos, os deficientes, os negros, as minorias, os que não tem dinheiro, os que não tem um carro top... Pouco a pouco eu percebo que é muito fácil amar aqueles que se sobressaem, que tem algum destaque, que tem o que oferecer em troca. É muito fácil reservar horas do dia para ouvir conversas divertidas, relatos de viagens, conselhos de qual loja comprar, de quais restaurantes frequentar. Um “amor” decadente, que se ocupa tanto do material, e se torna apático ao essencial. Um “amor” profícuo, que não encontra tempo para ouvir um desabafo, para fazer uma oração, para dar um conselho, para prestar uma simples ajuda. E enquanto isso vamos singrando por mares agitados a procura de “salva vidas”, vamos caminhando cansados no deserto a procura de uma única sombra, vamos sobrevivendo a tempestades a espera de um abrigo. Enquanto isso, a vida continua... não é mesmo? As metas ainda precisam ser cumpridas, as contas ainda precisam ser pagas, os contratos precisam ser assinados, a casa precisa ser arrumada, os livros precisam ser lidos, os eventos precisam ser planejados, os quadros precisam ser pintados... Mas enquanto se pinta quadros, sorrisos perdem a cor. Enquanto se planeja eventos, muitos planos se despedaçam. Enquanto se lê livros, se assina contratos e se cumpre metas, olhares perdem o brilho, corações se tornam solitários. Enquanto se arruma a casa, existem muitas histórias desarrumadas, muitos sentimentos fora do lugar. Porém, quem se importa de fato? Quem quer ouvir? Quem pode ou quer ajudar? Sinto-me exausta de tanta hipocrisia, sinto-me cansada de tantos discursos bonitos mas que não passam de discursos prontos e vazios. Nada acrescentam, nada oferecem, nada contribuem... Discursos frívolos que idealizam abraçar o mundo, mas que não são capazes de abraçar o que está mais perto. Discursos que prometem exterminar a fome, promover a paz, mas que não se materializam em pão e conforto para os mais próximos. Verdadeiras utopias... E é exatamente assim a vida, a estrada, a música, a viagem, a noite, a guerra, a solidão, o vazio, o inverno, a seca, a dor, o silêncio, a espera... Nunca compreenderemos... Prosseguiremos sentindo os ventos, as pedras, os calos nos pés, as indiferenças, as ausências, até a eternidade... E até lá, infelizmente, acabamos por nos tornar seres blindados, , tentando a toda custa nos proteger das falsidades, das mentiras, das ilusões e decepções da jornada. Nos tornamos soldados feridos guerreando as nossas batalhas particulares e subjetivas, lutando, ainda que com poucas forças, para sobreviver e chegarmos inteiros até o fim... Simone Contelli

Superando o preconceito

“Meio cega”, Foi o termo utilizado estes dias por uma pessoa ao falar sobre mim com o Alex.. Confesso que o termo nos pegou desprevenidos, nos olhamos, não sabíamos se ríamos, se ignorávamos a expressão, ou brincávamos com a situação. Talvez a falta de maturidade, a falta de delicadeza, ou quem sabe uma pontada de preconceito causou um avolumado de sentimentos contraditórios dentro de mim. Não que eu ainda não esteja acostumada com olhares curiosos, com diversas expressões e perguntas indiscretas... mas vamos combinar, as vezes falta mesmo o bom senso. Recordei-me de quando pequena, as muitas perguntas, olhares e curiosidades das crianças na escola. Perguntas inocentes, curiosidades admissíveis perante o “diferente”. E de verdade, desde pequena nunca me ofendi com perguntas, com curiosidades, nunca me importei em explicar sobre como é não enxergar, nunca enxerguei a deficiência visual como um claustro que isola, que esconde ou omite. Como toda criança, corri, pulei, brinquei, andei de bicicleta, acreditem! Como toda criança caí, ralei os joelhos, até dente quebrei! Mas fui criança, com todos os limites, fantasias, travessuras, direitos e deveres provenientes da infância. Cresci compreendendo que tenho sim uma deficiência visual, e ela até pode ser característica determinante para algumas pessoas me definirem, tipo aquela história bem conhecida: a gordinha, a magrela, a negra, a de cadeira de rodas, a surda, a muda, a ceguinha, ou “meio cega”... Porém, para mim a deficiência visual náo é a minha característica marcante, aliás, as vezes nem lembro que a tenho! Antes de ter uma deficiência visual, tenho uma alma, tenho sentimentos, tenho capacidades que adquiri ao longo da vida, tenho dons e virtudes que Deus me agraciou segundo a sua infinita misericórdia. Tenho sonhos que vão muito além do que os olhos podem ver... Antes de ser uma deficiente visual, sou humana! E justamente por isso não deixo de aproveitar a vida, de me dedicar a tudo o que gosto e a todos os que amo. Não me incomodo em falar sobre minhas dificuldades e limitações, afinal, elas podem não ser iguais a de todos os humanos que “enxergam”, mas são reais. Não me envergonho em pedir ajuda quando preciso, em lutar contra o preconceito, em defender meus direitos, em levantar a bandeira a favor da inclusão. E nessa travessia por entre caminhos e descaminhos, vou descobrindo aos poucos que posso errar como todo mundo, posso perder como todo mundo, posso ganhar, posso fracassar como todos podem, posso me adaptar a tudo, posso ser julgada, amada, admirada, posso ser alvo de pena, posso despertar curiosidade, posso instigar, inspirar, posso ser feliz! E quanto a nossa reação... deixa pra lá! Existem momentos e situações que além de “meio cega”, é melhor se passar por surda. A vida pode até não ser muito fácil sem enxergar, mas é bem mais leve e feliz quando não se dá importância a tudo o que se ouve... Simone Contelli